
A imunidade parlamentar contra o Estado e a prisão do Dep. Fed. Daniel Silveira
Inq 4.781 – Ministro Alexandre de Moraes
Em meados de novembro de 1863, o então presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, proferiu breve e memorável discurso na cerimônia de dedicação do cemitério nacional de Gettysburg, local onde realizada a batalha decisiva para o resultado da guerra de secessão norte-americana.
Na ocasião, exortou seus concidadãos, ainda sob o impacto de uma guerra que quase dividiu o país, a se unirem em torno dos ideais da igualdade e da liberdade, para que não desaparecesse da face da Terra o governo do povo, feito pelo povo e para o povo (… and that government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth).
O sucesso da empreitada norte-americana, porque fundado em valores inerentes ao ser humano, tornou-se aspiração e modelo para diversos países do mundo, entre os quais o Brasil republicano. Décadas se passaram e os desafios (sociais) surgidos com o progresso tecnológico e científico exigiram constantes ajustes (legislativos ou interpretativos) nas leis fundamentais desses países, infelizmente nem sempre com o objetivo de preservar o ideal de um governo promovedor da igualdade e da liberdade.
No Brasil, a experiência recente com governos autoritários fez com que o legislador inserisse na Constituição de 1988 mecanismos de salvaguarda do cidadão e de seus representantes contra abusos das autoridades da vez. Daí as garantias constitucionais (mandado de segurança, habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, etc.) para a defesa dos direitos fundamentais, e, ainda, o estabelecimento de uma série de prerrogativas voltadas à proteção do mandato eletivo.
A recente prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) fomenta a discussão sobre os limites dessas prerrogativas, em especial quanto à inviolabilidade das opiniões, palavras e votos dos parlamentares, estabelecida no art. 53 da Constituição Federal.
O parlamentar teve a prisão em flagrante decretada pelo Min. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no dia 16.2.2021, tendo em vista a divulgação de vídeo pelo canal do Youtube, no qual o deputado, “além de atacar frontalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio de diversas ameaças e ofensas à honra, expressamente propaga a adoção de medidas antidemocráticas contra o Supremo Tribunal Federal, defendendo o AI-5; inclusive com a substituição imediata de todos os Ministros, bem como instigando a adoção de medidas violentas contra a vida e segurança dos mesmos, em clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de poderes” (trecho da decisão divulgada no site do STF na internet, em 17.2.2021).
A confecção do vídeo teria sido motivada pela manifestação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin e Gilmar Mendes, sobre revelação feita em livro do ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, de que a cúpula das forças armadas redigira um tuíte, em abril de 2018, quanto ao julgamento de habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Luis Ignacio Lula da Silva. Para os Ministros do STF, o relato do general comprovaria o tom de ameaça sentido, à época, com a publicação do tuíte.
Por considerar que o deputado Daniel Silveira atenta reiteradamente contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (arts. 17; 18; 22, incs. I e IV; 23, incs. I, II e IV; e 26, da Lei n. 7.170/1973), o relator do Inquérito n. 4.781, instaurado pela Portaria GP n. 69/2019 (fundada no art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e chancelada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 572), determinou a imediata prisão do parlamentar, em flagrante delito e por crime inafiançável (por entender presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva), comunicando-a imediatamente ao presidente da Câmara dos Deputados, para observância do § 2º do art. 53 da Constituição Federal, o qual dispõe:
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
O dispositivo constitucional alberga aquilo que a doutrina reconhece como imunidade parlamentar formal, cujo propósito manifesto é o resguardo da atividade desenvolvida pelo parlamentar, e não a defesa individual dos membros do parlamento, motivo pelo qual a imposição de medidas cautelares, quando dificultam ou impedem, direta ou indiretamente, o exercício regular do mandato, também devem ser remetidas para deliberação da respectiva casa legislativa (cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.526), sendo essa exigência afastada somente quando se configurar situação de anomalia institucional e ética na casa legislativa competente (Habeas Corpus n. 89.417 – Primeira Turma).
Nesse contexto que a Segunda Turma do STF encaminhou ao Senado Federal a decisão de prisão preventiva do então senador Delcídio do Amaral (PT-MS), a partir do estado de crime permanente na formação de associação criminosa com o objetivo de atrapalhar as investigações no âmbito da operação Lava-Jato, determinada pelo Min. Teori Zavascki e referendada pelo colegiado fracionário em 2015 (Ação Cautelar n. 4.039); e que o Min. Roberto Barroso enviou, também ao Senado Federal, a ordem de afastamento do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) de seu mandato eletivo por 90 dias, tendo em vista seu envolvimento em esquema de desvio de verbas destinadas ao enfretamento da pandemia da Covid-19 (Petição n. 9.218), tendo essa análise sido esvaziada pelo deferimento do pedido de licença do cargo feito pelo investigado.
Sob a perspectiva jurídica, hoje a manutenção da prisão depende da realização de audiência de custódia em até 24 horas após a realização de qualquer prisão, a qual passa a ser considerada ilegal se não feita a apresentação do preso ao juízo competente, devendo ser relaxada pela autoridade responsável, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação da prisão preventiva, nos termos do § 4º do art. 310 do Código de Processo Penal (redação conferida pela Lei n. 13.964/2019 – conhecida como “pacote anticrime”). No ponto, vale realçar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, desde a expedição do diploma, a prisão preventiva prevista no art. 312 do CPP é inaplicável aos parlamentares federais (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.526, DJe 7.8.2018).
No caso do deputado Daniel Silveira, a audiência de custódia ocorreu antes do término do prazo legal (se for considerando seu termo inicial a proclamação do resultado da sessão jurisdicional na qual referendada a decisão do Min. Alexandre de Moraes), tendo sido conduzida por juiz instrutor, a quem o art. 21-A do Regimento Interno do STF atribui competência para designar e realizar as audiências de interrogatório, inquirição de testemunhas, acareação, transação, suspensão condicional do processo, admonitórias e outras (inc. I do § 1º), além de exercer outras funções que lhes sejam delegadas pelo relator ou pelo Tribunal e relacionadas à instrução dos inquéritos criminais e das ações penais originárias (inc. X do § 1º).
Por óbvio, as peculiaridades do caso reduziram o espaço de atuação do juiz instrutor na audiência de custódia realizada, sendo difícil imaginar o acolhimento de ilegalidade aventada pela defesa do deputado ou pela Procuradoria Geral da República, com o relaxamento da prisão ou a aplicação de medida cautelar, logo depois de a prisão em flagrante ter sido referendada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.
Assim, de acordo com a ata de audiência divulgada no site do STF na internet em 18.2.2021, o juiz instrutor limitou-se a recusar as alegações de inexistência de flagrância e de atipicidade do fato (considerada a imunidade material do parlamentar) suscitadas pela defesa, anotando que a situação “de permanência da custódia cautelar nessa modalidade [prisão em flagrante] haverá de permanecer até eventual concessão de liberdade provisória ou a sua substituição por medidas cautelares, palmar, mediante decisão do Senhor Ministro Relator, em virtude da higidez da decisão do Supremo Tribunal Federal” (fl. 3 do Termo de Audiência de Custódia no Inquérito 4.781).
A solução é heterodoxa, considerada a diretriz do art. 310 do CPP, que impõe ao magistrado condutor da audiência de instrução relaxar a prisão ilegal (inc. I), ou converter a prisão em flagrante em preventiva, quando cabível e inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (inc. II), ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (inc. III).
O caso ainda vai suscitar diversas questões jurídicas pelo seu ineditismo, mas o que importa, nesse episódio de aparente confronto institucional, é observar o juízo eminentemente político a ser realizado pela Câmara dos Deputados, que não precisa, para derrubar a ordem de prisão do deputado Daniel Silveira, apontar qualquer ilegalidade. Basta, para tanto, a decisão da maioria dos membros da casa parlamentar nesse sentido.
A postura dos parlamentares indicará como enxergam a imunidade que lhes foi conferida pela ordem constitucional vigente para a defesa dela própria. O representante do povo pode e deve fazer uso dessa prerrogativa para se insurgir contra desmandos e abusos cometidos na condução da coisa pública, valendo-se de sua especial condição para acionar e exigir dos órgãos e instituições competentes as providências necessárias à cessação e correção das irregularidades verificadas.
Nesse contexto, a utilização da imunidade parlamentar para proteger o direito de desacreditar os ocupantes de cargos públicos, sem a apresentação de qualquer prova das alegações desabonadoras, cujo prejuízo na imagem da instituição é potencializado pelos modernos meios de comunicação, serve apenas para fomentar o crescente sentimento de desesperança no modelo de organização político-social para a qual deram a vida tantas pessoas, dentre as quais as que repousam em Gettysburg.